sábado, 12 de novembro de 2011

CAPÍTULO V – Uma trisavó tremenda

Uma trisavó tremenda!  – eis o que eu descobri de mais relevante nesta minha incursão pelo passado remoto de Eça.
Ela defendeu a sua acirrada teimosia, fazendo-a prevalecer sobre o senso comum mais básico – que apenas a aconselhava a aceitar com alguma humildade e muita coragem a maternidade que a vida lhe colocara tão à pressa entre mãos.
Segundo as memórias de Maria d’Eça (que, para evitar confusões, era prima afastada da minha tia-avó Maria Eça de Queiroz de Castro), Carolina Augusta reagiu violentamente à surpresa desagradável de uma gravidez que não procurara de todo, transferindo imediatamente a sua raiva para o co-responsável em tão dramática situação.
Terá com certeza pensado surdamente, e por muito tempo, na atitude terrível que tomaria ao rejeitar o filho mesmo antes deste nascer – dando já corpo à ideia de não pretender assumir as suas responsabilidades de mãe.
E se não assumia o filho, a que propósito iria assumir a relação com o pai do mesmo?
Assim, quando o juiz Teixeira de Queiroz lhe enviou uma mensagem onde a alijava da carga formal dos factos – porventura um texto idêntico ao que depois iria apensar ao assento de baptismo do filho, em Vila do Conde –, a mãe de Eça respirou fundo e rapidamente se escondeu por entre os dias da sua vida de sempre.
A espaços, mais ou menos longos, terá também fugido a tudo o que representasse uma proximidade social que lhe lembrava o passado ainda recente e acentuava mais um pouco um inevitável peso de consciência.
Tudo isto poderá ser complicado, mas também muito possível.
O testemunho de que terá sido a mãe de Carolina, antes de morrer, a obrigá-la a jurar que assumiria a criança, casando com o respectivo pai, merece-me tanta credibilidade como um outro qualquer que afirmasse que ela, por fim – talvez também pressionada pela sua recente situação de órfã total –, aceitara arcar com a sua quota-parte de responsabilidade, readquirindo simultaneamente alguma substância social por via da família que por fim integrava.
As duas situações podem mesmo ser complementares.
Mas há algo de muito concreto que sempre alimentou as imaginações mais românticas e as dúvidas mais singelas: como pode uma mulher enjeitar um filho? Ora tal pergunta tem demasiadas respostas para poderem aqui ser enumeradas. No entanto, todos nós conhecemos melhor ou pior relatos mais ou menos agressivos quando se trata de maternidade não desejada.
O caixote de lixo é apenas um exemplo do fim da linha.

Entre a depressão
e a rejeição social

Mas Carolina não estava propriamente no fim da linha: não sendo uma rapariga rica, era no mínimo uma pessoa integrada na sociedade e na aristocracia rural e vianense da época.
Depois do nascimento de Eça passou certamente pela terrível situação de ser o núcleo dum segredo conhecido de muitos..., que talvez não falassem disso mas que sabiam de tudo! Tantas e tão fortes tensões, suportadas até mesmo numa certa solidão, permitem imaginar que a jovem Carolina Pereira d’Eça terá reunido um bom naco de intolerância para com todo este passado tão recente, para nela encontrar também algum suporte psicológico nas horas mais deprimentes. Uma espécie de adrenalina extra, obtida por via dum ódio periodicamente realimentado.
Afinal, podia ser uma situação com fundamentos patológicos!
Eu já ouvira falar do muito agressivo síndroma de Munchausen, em que a doente provoca o sofrimento (e mesmo a morte) do filho como forma de granjear a simpatia generalizada. É claro que tal doença só tem dois pontos comuns com o caso em análise: uma mãe e um filho.
Mas?..., e não existiriam patologias associadas?
A ideia esvoaçou-me na cabeça e orientou o meu braço até ao telefone mais próximo: urgia procurar novo combustível no vasto e boschiano universo da psiquiatria.
A minha fonte foi o médico psiquiatra e professor universitário Manuel Freitas Gomes.
À pergunta sobre complicações congéneres da que me interessava, o especialista fala-me imediatamente da «psicose pós-parto», que deveria – no seu entender – classificar-se antes como um tipo muito profundo de depressão. «Uma coisa gravíssima», sublinhou de forma veemente. Fui ainda informado de que este tipo de diagnóstico é de elaboração recente, com pouco mais de meio século de investigação.  
No entanto, perante as informações circunstanciais que lhe forneci, o psiquiatra concluiu que o caso de Carolina Augusta prefigurava antes uma relativamente vulgar e muito egoísta reacção de medo a uma presumível rejeição social resultante do então muito complicado estatuto de mãe solteira.
Tal «atitude rejeitante» terá sido, portanto, «uma resposta organizada não patológica, com fundamento social, e fruto exclusivo da sua personalidade» – expôs o médico, lembrando que reacções deste teor são bem mais comuns do que aquilo que um leigo pode imaginar.
O facto de Carolina ter posteriormente casado com o pai da criança e de ter com ele tido mais filhos exclui à partida qualquer patologia, e explica simplesmente que o seu medo primário se foi esbatendo com o tempo e as circunstâncias, onde a sua recente orfandade terá tido «um papel crucial na mudança de atitude» – conclui Freitas Gomes.
E reza a verdade que Carolina Augusta só não quis a proximidade de Eça enquanto criança e adolescente.
Porque com o passar do tempo, com os novos filhos, acomodou-se também ela à situação e o seu egoísmo foi-se mesmo mimetizando com num certo orgulho por aquilo em que o filho primogénito se ia progressivamente transformando: um grande e reconhecido artista.

Filho natural, naturalmente!

Eis pois todo o tremendismo da minha trisavó Carolina, que assim se explica não por ser um caso do foro clínico mas antes pelo seu horror à situação que viveu e respectivo impacto social – que à data só podia ser muito negativo.
A sua neta e minha tia-avó Maria descreve-a como «muito viva e autoritária e fazia-nos rir com as suas respostas prontas. Muito janota e muito boa dona de casa; eu não me fartava de admirar a mesa onde a Avó não dispensava dezasseis sobremesas!»... (in Eça de Queiroz Entre os Seus). 
Com toda esta arrumação militante e tantos cuidados na aparência, não espanta em demasia que uma inesperada gravidez de solteira tenha deixado Carolina Augusta completamente fora de si.

Será que isto não é bem mais razoável do que uma data de trapalhadas que, a poderem minimamente ter acontecido, teriam de contar com a simpática colaboração duma considerável quantidade de doidos ou igual número de cretinos?...
Eu acho que sim, e a documentação existente apoia-me. Ao contrário do que acontece com as enviesadas teorias de J.H. Saraiva e A. Bessa-Luís.
Como apontamento marginal, recorro a uma carta de Eça dirigida à sua mulher, remetida de Lisboa (25 de Março de 1889), onde descreve com pormenor a chegada a casa dos pais:
– «Encontrei a minha Mãe triste, mas forte de corpo; a Miló» (irmã do escritor) «com uma sombra de tristeza também, mas mais gorda; e meu Pai realmente bem, graças a Deus. A própria Mamã dizia que “o tempo tudo acalma, mesmo quando se deseja resistir à influência do tempo!».
Este pouco animado relatório e respectivos estados de espírito resultavam do facto de Alberto Eça de Queiroz – irmão mais novo do escritor – ter morrido poucos meses antes.
Nota-se na frase de Carolina, usada pelo seu filho José Maria para reflectir sobre tal ocasião, que ela vem de alguém que sabe perfeitamente do que está a falar, desde há muito e em diferentes contextos: – «(...) O tempo tudo acalma, mesmo quando se deseja resistir (...)».
O que é bem verdade.
Paralelamente, haverá quem possa questionar também como é que uma família da alta nobreza de Portugal – como era a Casa de Resende – aceitou com grande naturalidade a ascendência conturbada deste seu novo membro (pelo casamento, claro está), afinal uma visita habitual desde há muito por via da sua longa relação de amizade mantida com os irmãos Luís e Manuel de Castro Pamplona* (que usavam o nome familiar da mãe em último lugar, à maneira espanhola).
No entanto, a aceitação de Eça pelos Resende é um falso problema e tem um muito banal antecedente. Porque o amigo Luís – 5º conde de Resende e irmão de Emília, futura mulher do escritor – tivera, ele próprio, um filho natural (e para sempre de mãe incógnita, embora se conte que chegou a encontrar a mãe uma única vez).
Ficou conhecido na família como o Luís ‘Grande’, por ser efectivamente de grande estatura – aliás como a maioria dos Resende. E, tal como aconteceu com Eça, a Luís (‘Grande’) de Castro nunca ninguém perguntou o que se tinha passado afinal com a sua mãe.
Isto sucedia por uma simples questão de bom gosto e de real respeito e lealdade para com os envolvidos, que certamente iriam sentir-se extremamente magoados face a semelhante exposição.
Para mim, esta é a única razão que levou o meu tio-avô António Eça de Queiroz a escrever o que escreveu sobre o seu pai – texto de que o plumitivo sr. Valdemar tanta chacota fez no seu miserável ‘relato’ publicado no ‘DN’ em Junho de 2004.
  • Manuel de Castro Pamplona sucedeu ao seu irmão Luís como 6º conde de Resende, casou Com Maria das Dores da Câmara (Carvalhal) e foi pai da minha avó Matilde de Castro - que mais tarde iria casar com o seu primo direito José Maria, filho de Eça e da sua tia Emília de Castro Pamplona

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